O meu computador
por Licínia Quitério
Desbravar um computador, nos finais do século vinte, teve o seu quê de aventura para quem como eu aprendeu a escrever com caneta de pau, aparo de folha molhado em tinteiro de vidro, salpicos de tinta na folha de papel, no bibe e no chão.
Aventura talvez comparável a ser largado de noite numa cidade grande aonde vamos pela primeira vez. Tudo o que sabemos é que ela existe, está ali à nossa volta, mas não sabemos por onde seguir, nem o que iremos encontrar. É um dobrar de esquinas, um voltar atrás, uma espreitadela aqui, outra mais além, um deambular inconsequente à procura sabemos lá bem de quê.
É certo, porém, que sempre alguma coisa haveríamos de encontrar. Diálogo bem bizarro este, diga-se. Feito de sinais cabalísticos, de linguagens de Babel, resultando em encontros ou perdições. Impiedosa, esta máquina de aventura. A lógica é o seu sustento, lógica é a sua esteira de progresso, lógicas as suas revoltas contra a nossa ausência de lógica. Assim não é a vida. Antes toda feita de contradições, de relações logicamente inexplicáveis, de desfechos inesperados. Assim não és tu, máquina, porque os deuses que te criaram, egoístas como qualquer deus que se preze da sua omnipotência, não te transmitiram a chama sagrada do sentir antes do saber. Só sabes, tout-court. Sentir, não é para ti.
Por isso mesmo, quem sabe, o nosso relacionamento foi mais pacífico do que esperava. Perante a tua absoluta passividade, a tua ausência de emoções, o teu seguidismo aos ensinamentos do criador, quebram-se irremediavelmente todos os meus ímpetos de animal forrado de instintos, de sensações, de emoções. Contigo não há artimanhas que resultem. É tudo ou nada. Passa corrente ou não passa. É branco ou é preto. Não aceitas um talvez, um poucochinho, um acinzentado. Ainda bem. Por toda essa frieza te saúdo. Dás-me a calma necessária no tempo requerido.
Para mim, pobre ignorante das virtualidades de uma ferramenta como tu, és pouco mais do que uma preciosa máquina de escrever o que te mando. Uma obediente e limpinha serva que só exige ordens inequívocas. Quem me dera fosses mais do que isso. Que penetrasses nos neurónios da minha mente confusa e conseguisses extrair da meada intrincada de memórias e pensares o fio alinhado do discurso necessário. Nunca os homens falaram tanto como nesta era da sagrada comunicação, mas talvez nunca tenham dito tão pouco. Vivemos encharcados de palavras, de sons. Mas quantos dizem o que é urgente dizer? Tantas vezes apetece perguntar: Está aí alguém?
Pensando melhor, será mais prudente não o fazer. Se o computador me responder, o que é que eu faço? Fujo a sete pés. Vou ao sótão onde ainda guardo alguns jogos da infância, limpo-os do pó e peço-lhes desculpa por os ter traído.
Licínia Quitério
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Deliciosa críonica. Como é saboroso tudo quanto Licínia Quitério escreve!